sábado, 5 de abril de 2014

Em luto pelo caso Torres-RS - Versão 2

"Não era por vaidade que eu queria o parto natural, era uma questão de saúde mesmo. Era o melhor para mim", "Era para eu ter parado de ter filhos, mas errei com os remédios. Lembrei do médico falando que não era indicada para mim uma terceira cesárea. Ele foi o obstetra da nossa segunda filha", Adelir Carmen.



Aquele dia ficará em minha memória e na do meu marido para todo o sempre. O dia em que entrei em trabalho de parto.

Aquele dia foi inesquecível porque eu me conectava com meu próprio corpo de uma maneira única. Porque vivemos momentos mágicos em casa enquanto aguardávamos o parto evoluir. Passei horas com meu marido, apoiada por ele, recebendo massagem. Abraçados, íamos contando cada contração, sentindo ela se mexer. Assistimos também um filminho light e decidimos juntos a hora de ir para o hospital. 

Além de todo o romantismo, a gente ainda lavou a pequena louça do lanchinho da madrugada e molhamos as plantas. Antes de sairmos de casa, olhei para o berço dela e pensei que finalmente aquela seria a última vez que o veria vazio. Apagamos as luzes e saímos.

Fomos com muita ansiedade pela vontade de ter nossa filha nos braços. Fui sentindo meu corpo trabalhando para trazê-la ao mundo e me dizendo que agora eu estava preparada para me tornar mãe. Isso foi para mim, Patrícia, alcançar e viver a plenitude de ser mulher.

Eu não consigo nem sequer imaginar mais a minha vida sem essa página. Não consigo imaginar não poder contar essa história para minha filha. Não consigo imaginar como funcionaria minha mente daqui pra frente se eu tivesse sido escoltada por policiais armados e juiz como uma criminosa no momento mais sublime da minha vida.

Eu me ponho no lugar de Adelir e choro por dentro.

Passam os dias, a gente pensa e repensa e resolvi escrever de novo sobre o caso da Adelir. O motivo em voltar a esse assunto é que, naquele primeiro post eu ainda estava exaltada e talvez eu tenha me equivocado em focar tanto no ponto dos riscos que aquela gestante poderia ou não estar sofrendo. O que parecia óbvio para mim, tanto que coloquei em apenas duas linhas, não parece óbvio para outros: princípios constitucionais de liberdade.

A questão toda não envolve riscos, envolve direitos e preconceitos. (pois já está bem evidenciado que aquela gestante, com duas cesáreas prévias e aquele bebê sentado, não teriam riscos significativamente maiores pelo parto normal comparado com cesárea, muito menos estavam em risco iminente de morte).

Voltando à minha história... com 41 semanas de gestação, esperando para um parto normal, cheguei a discutir com meu médico opções para intervirmos, pois estávamos perto do final do que ainda é considerado termo. Indução ou cesárea foram as opções que ele me deu. Já sabia que iria querer cesárea e quando coloquei isso para ele, na hora (como sempre), ele me encheu de estatísticas e artigos que provavam que induzir traria menores riscos para mim e para minha bebê. O que eu respondi? Cesárea, vou querer cesárea. 

Hoje eu me pergunto porque essa seria minha decisão? Eu não sei. Acho que eu preferiria passar pelos riscos (mesmo que maiores) que a cesárea traria do que os que a indução (mesmo que menores) traria, que são completamente diferentes. Talvez porque os números por si só não estavam sendo capazes de vencer meus medos e preconceitos. Medos e preconceitos baseados nos mitos que a própria população cria contando seus casos individuais, que a industria farmacêutica cria pelos seus interesses financeiros e que a equipe da saúde cria pelos seus interesses pessoais.


E é nisso que quero chegar: preconceitos. A banalização da cesárea no Brasil é tamanha que ninguém acredita mais que uma mulher é capaz de parir naturalmente e que o parto normal é seguro. É tamanha que ninguém mais, nem os próprios médicos, acredita nos riscos potenciais que a cesariana traz. E a partir daí, cesariana no Brasil virou solução para todos os casos; ela de fato soluciona alguns, mas traz outros riscos tão sérios quantos ou mais. A partir daí criou-se o preconceito. Parto normal virou coisa de "bicho", parto sem anestesia virou coisa de "índio" e cesariana eletiva virou coisa de "menos mãe".


Só que você não querer para si próprio parto normal e/ou não acreditar que é possível, não te dá o direito de julgar, baseado nos seus preconceitos, a decisão da Adelir e muito menos intervir de maneira arbitrária

Assim como os riscos em fazer uma indução eram menores do que a cesariana no meu caso, eu ainda tinha a opção. A escolha seria minha. Liberdade. Como no caso da Adelir, no qual os riscos para um parto normal eram infimamente maiores caso ela optasse por uma cesárea, ela deveria ter tido o direito de decidir. Porém, a condução do seu caso feriu os princípios éticos constitucionais de liberdade e da profissão médica:

Código de ética médica:

   
Capítulo IV: Direitos humanos: 
       Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Capítulo V: Relação com pacientes e familiares:
       Art.31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Além disso, sabemos que o caso Adelir era especial. Envolvia uma situação emocional delicada: era uma mulher com um trauma de duas cesarianas previas indesejadas. Envolvia um caso clínico difícil no qual qualquer médico teria todo o direito de recusar a atender e poderiam, por exemplo, chamar uma equipe médica especializada em parto normal para bebê pélvico. Poderiam até mesmo acionar a equipe da psicologia já que acreditavam que realmente a gestante estava se submetendo a sérios riscos. Poderiam muita coisa, menos chamarem a polícia. Não poderiam sobrepôr suas opiniões pessoais ao direito da paciente, garantido por lei.

As pessoas que aprovam o ocorrido questionam: e se algo acontecesse com a mãe e o bebê caso fizessem parto natural? Eu então pergunto: e se tivesse acontecido alguma coisa com eles durante a cesárea? Quem seriam os responsáveis? Quem seriam os culpados? Ninguém. Não é o caso de procurarmos culpados. Nenhum médico e nenhum paciente é culpado pelas milhares de complicações e mortes maternas e neonatais que ocorrem no Brasil tanto em partos normais como em partos cesáreas, tanto em caso simples quanto em casos complicados. Porque nenhuma gestação é isenta de riscos. 

Assim, o caso de Adelir passou a a ser especulado, apenas porque virou caso de polícia, virou um caso publico. Quem é o culpado pelo bebê que nasceu ontem de cesariana eletiva e foi parar na UTI com desconforto respiratório, a complicação mais comum decorrente da cirurgia? "Ah, que bebê? Nem to sabendo..."

Se o seu preconceito ainda te faz pensar que duas vidas foram salvas da maneira como o caso foi abordado, mesmo com todas as evidências de que a mãe e o bebê não estavam em riscos reais para indicar uma cesariana, então eu te pergunto:

A favor do que você é, caso Adelir tivesse desobedecido a ordem judicial e se recusado a ir com os policiais? Que a levassem para depor na delegacia em pleno trabalho de parto? Que fosse detida em uma cela em trabalho de parto? Que atirassem nela (pois ainda não entendo porque os policiais foram armados), para "salvar" o bebê? Ela foi submetida à repressão. Sem escolha, ela teve que obedecer, porque muito sã da mente ela estava, então sabia que se batesse de frente naquele momento aí sim estaria colocando a vida dela e a de um nascituro em risco iminente de morte.

Se nós, homens e mulheres, seres humanos, permitirmos e apoiamos essa barbaridade e julgamos necessária a arbitragem para diminuir riscos mesmo que ínfimos, então devemos lutar para que cesariana eletiva seja proibida. Cesariana causa 2,5 vezes mais risco de morte ao bebê do que parto normal.

Devemos lutar para que gestantes que fumam ou usuárias de álcool sejam presas e fiquem em observação por nove meses para garantir que não farão uso dessas drogas, pois como sabido, causam risco de morte fetal, aborto espontâneo, parto prematuro e más formações congênitas sérias.

Devemos lutar para que homens e mulheres sejam obrigados a doar seus rins, para salvar a vida de uma criança, que está em risco.

Devemos lutar para que McDonald´s e Coca-cola sejam proibidos pois como sabido, doenças cardiovasculares são as que mais matam no Brasil e no mundo.

Devemos lutar para que gestantes, querendo ou não, sejam acompanhadas por doulas, pois sabe-se que a presença delas reduz 14% risco de internação do nascituro e 28% número de cesáreas desnecessárias.

Falando em doulas, fico tristíssima quando escuto que doula é modinha. É por pensamentos como este que médico, enfermeiro, fisioterapeuta, doula, nutricionista, psicólogos e outros nunca saberão trabalhar em equipe. É por pensamentos como esse que casos como o de Adelir ocorrem. Até mesmo profissionais da saúde estão questionando a importância de uma doula. Contraditoriamente, esses mesmos profissionais acham ruim que a sua categoria em questão é desvalorizada.

E esse também não é um caso de idealismos "parto normal x cesárea". Eu jamais optaria por uma cesárea eletiva, por motivos que já até expus aqui no blog, mas nem por isso julgo quem faz. Assim, se você é contra parto normal, não me julguem e nem julguem Adelir, até mesmo porque se você apoia o que foi feito contra ela, você apoia violência contra você mesma. Violência obstétrica é violência contra mulher, portanto você pode ser a próxima, pois esse caso abre precedentes para qualquer outro. 

Assim, um ou dez policiais poderão bater em sua porta, te obrigando a episiotomia, a parto normal, a cesárea, a ficar em casa, a ir para o hospital ou para a montanha, a ir para a banheira, a ficar na cama, a engravidar, a abortar... baseados na opinião de uma médica. Acordem. Somos todas Adelir!(http://somostodxsadelir.wordpress.com/)

Depois dessa semana cheia de violência e acusações, agora eu só consigo pensar nas minhas plantinhas molhadas às três da manhã. Elas me fazem lembrar que em pleno século 21, mulheres ainda não são tratadas como seres humanos. Agora minhas plantinhas me fazem lembrar que ainda temos que lutar para que possamos molhá-las e apagar a luz antes de sair de casa para dar à luz.


Veja o nascimento da Mariana, por parto natural hospitalar, pélvico:
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Um breve resumo do caso Adelir, se você não estiver por dentro do que está acontecendo:

Uma gestante de 42 semanas, em trabalho de parto foi retirada de casa a força por policiais e mandado judicial para ir ao hospital fazer uma cesariana, contra sua vontade. A gestante estava em casa, aguardando a evolução do parto para ir ao hospital, onde desejava ter parto normal. Gestante com histórico de duas cesáreas prévias e bebê pélvico (sentado). Gestante e bebê clinicamente estáveis conforme ultrassom realizado na data do ocorrido.

Gestação a termo por definição: 37 a 42 semanas.
Bebê pélvico (sentado): Indicação para parto normal pela Organização Mundial da Saúde e American College of Obstetricians and Gynecologists, com equipe especializada.
Risco de morte fetal em apresentação pélvica por cesariana: 2,3%
Risco de morte fetal em apresentação pélvica por parto normal: 2,5%
Risco de ruptura uterina em parto normal após cesárea: 0,5 a 1%, ou seja chance de até 99,5% de sucesso. 
Risco de histerectomia em parto normal após duas cesáreas: 0,6%
Risco de histerectomia em cesárea após duas cesáreas: 1%
Outros riscos maternos em parto normal após duas ou mais cesáreas aumentam tanto quanto os riscos em cesárea após duas ou mais cesáreas. Os riscos no caso da cesária também incluem hemorragias, além de lesões na bexiga, intestino e outros. Por isso, a possibilidade de parto normal após uma cesárea se estendeu para duas ou mais cesáreas.

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